31 de Julho de 2008 - 14h:44

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Uma legislação para os contratos de seguro

Por: Valor Online

A última década do século XX foi marcada por uma fúria anti-Estado e anti-regulação que varreu vários países - inclusive o Brasil. Fazia-se necessário, de fato, mudar o estatuto e os resquícios sobreviventes do modelo nacional-desenvolvimentista e os excessos regulatórios das economias autarquizadas. Mas a referida fúria cometeu reconhecidos excessos - reconhecidos até mesmo por liberais radicais -, deixando inúmeros vácuos regulatórios e zonas cinzentas de ingovernabilidade.

Com o passar do tempo e à luz da experiência, se reconheceu que, mesmo na era do capitalismo global, são necessárias regulações públicas para que os mercados possam funcionar sem o temor de canibalizações disfuncionais das economias. Esta primeira década do século XXI é marcada por uma consistente afirmação do papel regulador do Estado e, no plano global, pelo papel crescentemente regulador dos organismos multilaterais.

No rastro da crise das hipotecas nos Estados Unidos, vários economistas de todas as tendências, inclusive os liberais, reclamaram a ausência de um marco regulatório eficaz para o sistema financeiro daquele país. Muitos chegaram a sugerir que a crise jamais teria ocorrido no Brasil por estar protegido com um bom sistema regulador do mercado financeiro. Seguindo a velha sabedoria, é preciso reconhecer que a virtude está no meio termo e no bom senso: se o excesso regulatório é paralisante, sua falta pode conduzir a desastres.

Estabelecido esse preâmbulo, cabe observar que um importante mercado brasileiro carece de uma regulação mais consistente para definir as relações contratantes que lhes são inerentes. Trata-se do mercado de seguros. O Projeto de Lei nº 3.555, de 2004, de autoria do deputado José Eduardo Cardoso (PT-SP), visa exatamente suprir essa carência normativa dos contratos de seguros.

Estima-se que, hoje, sejam celebrados cerca de 400 milhões de contratos de seguros todo ano. Trata-se de um gigantesco mercado que envolve valores de boa parcela do PIB brasileiro. O Brasil, país que vem desenvolvendo um importante esforço de modernização, tem auferido, ao longo dos anos, um eficiente marco regulatório em várias frentes - principalmente na área de serviços. Basta lembrar as leis de locação, de alienação fiduciária, do cheque, das desapropriações, de registros públicos, de falência etc.

Uma boa regulação deve orientar-se por dois princípios: 1) proteger os direitos das partes e terceiros envolvidos; e 2) estimular, através das garantias e das previsibilidades, o desenvolvimento de mercados específicos. São, precisamente, esses dois princípios que o Projeto de Lei nº 3.555 procura viabilizar. Um mercado tende a se potencializar quando as partes contratantes têm garantias efetivas de seus direitos e de seus interesses.

Vários países, a exemplo da Alemanha, Itália, França, Espanha, Bélgica, Portugal, Argentina e Venezuela, têm leis de seguros. O projeto de lei dos contratos de seguro, por suprir uma lacuna e por atender a uma necessidade, tem recebido inúmeras manifestações de apoio de vários setores. A professora Judith Martins-Costa, uma das maiores estudiosas do novo direito civil brasileiro, argumenta que a aprovação do projeto "constitui um importante passo na atualização do direito de seguros no Brasil". Para outros juristas brasileiros e estrangeiros, a aprovação do projeto dotaria o país com uma das mais modernas leis de contratos de seguros da atualidade. Especialistas dos mais diversos países também escreveram ao Congresso Nacional elogiando a iniciativa e ressaltando que um país em pleno crescimento como o Brasil não pode ficar sem uma lei moderna e eficaz de contratos de seguros.

Outro aspecto relevante da aprovação de uma lei de contratos de seguro diz respeito ao fato de que o próprio Poder Judiciário seria desafogado de milhares de processos anuais causados pelos abusos e pela falta de regulação nas relações entre segurador e segurado no mercado de seguros. O projeto, ao acabar com algumas brechas que conclama para o litígio e ao consignar de forma clara os direitos dos segurados, que não estão previstos ou estão previstos de forma insuficiente no Código de Defesa do Consumidor ou em outras leis, inibe abusos, moderniza e torna mais transparentes as relações de um mercado que é a cada dia mais abrangente e mais complexo.

O fato é que a ampla liberdade de negociação que as atividades econômicas devem comportar não pode se traduzir em abuso, em privilégio e em desrespeito aos direitos e aos interesses dos consumidores, da sociedade e do próprio empresário de seguro (seguradora, corretor, resseguradora etc.). Um país como o Brasil, que busca alçar um patamar estratégico de potência significativa no século XXI, não pode permanecer prisioneiro de estruturas jurídicas inadequadas e de práticas comerciais e contratuais pouco éticas e reacionárias nos diversos mercados de serviços. Os excessos regulatórios existentes não podem justificar a não-regulação. A segurança jurídica é um dos requisitos fundamentais para o dinamismo das economias contemporâneas. A segurança jurídica é garantida por boas normas e não pela ausência das mesmas.

Certamente por tudo isso é que os deputados integrantes da comissão de desenvolvimento, indústria e comércio da Câmara dos Deputados acabam de aprovar por unanimidade o parecer favorável do relator Leandro Sampaio acerca do Projeto de Lei nº 3.555. Ainda que poderosas forças se tenham colocado contra a iniciativa parlamentar e, até o momento, o projeto não tenha recebido o devido apoio por parte do governo, o exemplo dos deputados da comissão deixa claro que não serão os preconceitos, nem o imobilismo, que impedirão o Brasil de conquistar democraticamente a sua primeira lei de contrato de seguro.

Ernesto Tzirulnik, advogado e presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS)
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