12 de Agosto de 2008 - 15h:14

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Bancas focam mercado da corrupção

Por: Valor Online

Na manhã da terça-feira passada, a advogada Isabel Franco, sócia do escritório Demarest & Almeida Advogados, recebeu um telefonema de um alto executivo de uma empresa brasileira de grande porte do Rio de Janeiro que atua no segmento de maquinário pesado. O objetivo era questioná-la sobre a licitude da intenção da companhia em financiar a ida de um congressista brasileiro à Olimpíada de Pequim. A dúvida do executivo causa estranheza no país do "jeitinho" - o relatório da organização não-governamental Transparência Internacional, que mede o índice de percepção da corrupção, colocou, em 2007, o Brasil ao lado de países como Gana, Romênia e Senegal. Mas a formulação de questões como essas a advogados se torna comum no Brasil - e o principal motivo é, curiosamente, uma legislação americana.

Escritórios de advocacia brasileiros que trabalham na área de direito empresarial estão sendo procurados para orientar clientes - empresas nacionais e multinacionais - preocupados em conhecer as normas anticorrupção que podem, em algum momento, vir a atingir seus negócios. É o caso da lei dos Estados Unidos chamada Foreign Corrupt Practice Act (FCPA), que estabelece sanções penais e cíveis a representantes de empresas que corromperem funcionários públicos estrangeiros, sejam eles das matrizes ou de suas subsidiárias (veja quadro ao lado). A legislação americana foi criada em 1977, após o escândalo de Watergate, e seguida por diplomas legais semelhantes em vários países do mundo. Em 1997, os países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) assinaram a Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, da qual o Brasil também é signatário.

Apesar de não serem novas, essas leis começam, agora, a provocar a reação de empresas do mundo todo - inclusive do Brasil. E sobram motivos para isso. De acordo com um levantamento feito pelo escritório de advocacia americano Miller & Chevalier, o número de processos abertos contra empresas batem recordes nos Estados Unidos. Em 2006, a Securities and Exchange Commission (SEC) - a CVM americana - e o United States Department of Justice (DOJ) - Ministério Público - abriram um total de 15 investigações contra companhias com base na FCPA. No ano passado esse número saltou para 38 e apenas de janeiro a junho deste ano foram abertos 16 procedimentos. Em outros países não é diferente. A Alemanha, que há dez anos permitia que o pagamento de propinas fosse deduzido do imposto de renda, investiga hoje uma de suas maiores empresas - a Siemens -, acusada de corromper funcionários públicos em vários países, inclusive no Brasil e nos Estados Unidos. A empresa descobriu 1,3 bilhão de euros em transações suspeitas entre 2000 e 2006. O caso que envolve a francesa Alstom é outro exemplo: documentos encontrados na Suíça indicam que a companhia pode ter atuado de forma irregular em licitações na Ásia e na América Latina entre 1995 e 2003.

No caso do Brasil, há um motivo a mais que traz à tona o tema corrupção entre os empresários: o país, desde 2006, vive um recorde de fusões e aquisições decorrentes, em boa parte, do aumento do interesse de empresas estrangeiras nos ativos brasileiros. E, na chamada "due dilligence", auditoria realizada pela parte compradora na empresa que está à venda onde são levantados seus passivos, muitas vezes são encontradas práticas ilícitas que podem comprometer a imagem das empresas e, conseqüentemente, o negócio em andamento.

A situação surgiu recentemente, durante o processo de compra de uma empresa nacional do setor de serviços por uma americana que atua no mesmo segmento. O negócio, agora em fase de conclusão, desenrolou-se durante o último ano e, em um determinado momento, surgiu a hipótese de que algumas condutas da brasileira pudessem submeter a americana, no futuro, às sanções previstas na FCPA. A suspeita era a de que funcionários da empresa pudessem ter pago propina a funcionários públicos municipais que fiscalizam obras no Brasil e surgiu durante o processo de due dilligence, a partir de denúncias de trabalhadores. A dúvida, segundo o advogado Antenor Madruga, sócio do escritório Barbosa, Müssnich e Aragão Advogados que comanda a área de recuperação de ativos da banca e que assessorou a empresa no caso, era se ela deveria reportar o caso às autoridades americanas. Após oito meses de investigação dentro da companhia brasileira, não foram encontrados indícios de prática de corrupção - mas ainda assim a americana decidiu por informar as autoridades dos EUA as medidas que estavam sendo tomadas para evitar a prática no futuro.

O mesmo aconteceu no início do ano passado, quando uma multinacional americana descobriu, durante o processo de compra de uma empresa brasileira, que esta havia sido citada no relatório do escândalo do "oil for food" (petróleo em troca de alimentos), programa da Organização das Nações Unidas (ONU) que funcionou de 1997 a 2003, pelo qual o Iraque vendia seu petróleo e a receita era destinada à compra de alimentos. Segundo investigações dos serviços de inteligência americanos, o país teria recebido mais de US$ 200 milhões em propinas de gente interessada em comprar petróleo. A citação do nome da empresa no relatório foi descoberta durante o processo de due dilligence - e apenas após a brasileira ter comprovado que havia sido envolvida no escândalo erroneamente e um parecer ter esclarecido que, ainda que ela estivesse envolvida, à época não estava sujeita às regras do FCPA, a compra foi concluída.

Nem sempre, no entanto, tudo corre bem e as empresas saem ilesas das due dilligences - que envolvem buscas em tribunais de contas, casas legislativas, comissões parlamentares de inquérito (CPIs), entrevistas com diretores e funcionários para levantar indícios de práticas ilícitas e da contratação de empresas de investigação para buscar sinais exteriores de riqueza tanto de executivos quanto do baixo escalão. A advogada Isabel Franco, especialista em legislação anticorrupção, conta que, no ano passado, assessorou uma multinacional do setor de informática que se preparava para comprar uma empresa de pequeno porte do mesmo ramo, de capital 100% nacional. Mas, quando tomou conhecimento da situação da empresa, desistiu do negócio. Nas entrevistas com os funcionários feitas durante a due dilligence, conta Isabel, ficou-se com a impressão de que "todo mundo 'dava jeitinho' em tudo".

Desistências como essa começam a surgir no país diante do aquecimento das fusões e aquisições e do potencial atrativo dos ativos brasileiros - ainda que, nesses casos, a empresa compradora não herde o passivo penal da adquirida, pois esta não estava sujeita às regras da FCPA. Isso ocorre, em parte, por uma questão cultural - algumas empresas estrangeiras já abandonaram definitivamente práticas ilícitas diante do FCPA com a adoção de rígidos códigos de ética e programas de compliance. E, em parte, porque muitas vezes a irradiante lucratividade das empresas alvo das aquisições esconde um esquema gigantesco de práticas ilegais - como o pagamento de propinas a funcionários de governos e fraudes em licitações. Sem isso, a margem de lucro se torna pouco atrativa.

Foi o que ocorreu há dois anos com uma multinacional americana que atua na área de maquinário de rodovias e de infra-estrutura e que negociava a compra de uma brasileira do mesmo ramo. Durante a due dilligence, descobriu-se que boa parte do faturamento da lucrativa empresa nacional vinha de licitações - e, curiosamente, ela vencia todas. De outro lado, foram identificadas saídas de caixa estranhíssimas. Comissões provavelmente pagas ilegalmente a funcionários públicos estavam disfarçadas de "taxas de consultoria", e das quais não havia contratos. "A empresa era a imagem do sucesso, mas chegamos à conclusão que, sem ilegalidades, a empresa não teria o mesmo lucro", conta Isabel Franco, que assessorou a multinacional na due dilligence. "O argumento de que a FCPA não se aplica aqui não importa, pois as empresas americanas, cada vez que interagem com outras, fazem uma investigação das empresas que estão sendo adquiridas ou com as quais fecham contratos de fornecimento", diz. Além disso, segundo Isabel, nos contratos de promessa de compra as empresas já incluem uma cláusula que estabelece que, caso se descubra, na due dilligence, práticas que infringem as regras da FCPA, a compradora pode rescindir o contrato.

O Demarest já possui mais de uma dúzia de clientes na área, a maioria em busca de consultoria e, no TozziniFreire, que também possui um departamento de compliance para orientar empresas a respeito das normas anticorrupção e na elaboração de códigos de ética, surgem dúvidas de todo tipo. "Já fui consultada sobre a possibilidade de a empresa dar uma geladeira de presente a um fiscal de tributos", diz a advogada Shin Kim, sócia do TozziniFreire na área de compliance. Segundo ela, a maioria das consultas que recebe é de clientes que querem saber o que fazer diante de situações que surgem. "Há uma crescente conscientização sobre isso", diz.

Cristine Prestes, De São Paulo

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