08 de Outubro de 2008 - 14h:46

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A transação tributária e seus descontentes

Por: Valor Econômico - Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Desdobra-se junto à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) um projeto de lei que dispõe sobre a transação em matéria tributária. Tem-se como objetivo possibilitar a composição de conflitos e a terminação de litígios, extinguindo-se o crédito tributário ainda em âmbito administrativo. O acompanhamento das manifestações dos críticos do projeto pode revelar que há quatro fantasmas que rondam as discussões sobre o referido projeto de transação. Refiro-me, explicitamente, à escravidão para com o passado, à falta de imaginação institucional, a uma certa monoglossia crônica, bem como a uma cultura patologicamente macunaímica, que tem como premissa a idéia de que seríamos sistematicamente corruptos. Quem exatamente? 

Essa antropologia negativa é sintoma de idiossincrasia freudianamente explicada na tese de que seríamos culpados por tudo quanto não somos. As razões de nosso atraso, nos termos desse intrigante complexo de inferioridade, que se percebe nas várias e precipitadas manifestações contrárias ao projeto, estariam no fato de que nossa devassidão moral seria endêmica. Não poderíamos inovar. Estamos condenados. No ânimo de mudança se enclausuraria nossa perversão prevaricadora. 

A discussão sobre o projeto de transação reanima o velho patrulhamento ideológico. Retoma maniqueísmo que se julgava esquecido. De um lado, contra o projeto, serafins, querubins, um coro, qual cardume de teóricos bem intencionados, na síndrome do pânico que plasma o sobressalto para com o desconhecido. Acena-se com a ruptura da legalidade, canonizam-se as autoridades fiscais, ameaça-se com a imprestabilidade futura de toda a ação burocrática. Lê-se Max Weber com as tintas do Apocalipse. O enterro coletivo do animado coro de críticos que metralham a transação suscitará um epitáfio corrosivo: eles amavam o carimbo. 

Do outro lado da trincheira, na defesa do projeto, a razão faustiana dos que teriam pactuado com Mefistófeles. A prenda, da bela Margarida, transitaria para remissões e anistias perigosas. A ressurreição coletiva dessa farândula malvada seria saudada pelo mote dos audaciosos: a perfídia é mais que púnica. De brinde, apontam o crédito-prêmio IPI. 

Para os querubins, o projeto de transação tributária é uma ameaça à candura do modelo burocrático-fiscal que se tem presente. A exemplo da advertência de Walter Benjamim, os querubins dão um salto ao passado e da história só apanham o que convém. Anjos transformam-se em tigres. É que, na lembrança de Roberto Mangabeira Unger, "a ameaça de nossos interesses e ideais depende de nossa capacidade de avançar, também, no terreno das alternativas ainda desconhecidas". 

A falta de imaginação institucional do alegre coro avança a ponto de que se esqueça que a transação é uma circunstância já prevista no Código Tributário Nacional (CTN). Refiro-me ao artigo 171 do código, que dispõe que a lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, implique em término do litígio e conseqüente extinção do crédito tributário. É dessa lei que o projeto trata. Como diria Gilberto Amado, é difícil achar um brasileiro capaz de ligar causa e efeito. É essa falta de imaginação institucional que nos mantém prisioneiros de um custo de aquiescência que consome energias empresariais, que Roberto Campos diria gastas na engenharia da evasão. 

A transação tributária poderia acenar com a possibilidade de que discussões entre o fisco e os contribuintes fossem estancadas na própria administração. Poderia se evitar a judicialização. Poderia haver um maior diálogo entre o fisco e o contribuinte. Dessa angústia já compartilhava Rubens Gomes de Sousa, que em carta a Aliomar Baleeiro, datada de 25 de setembro de 1944, já colocava a sobrecarga do Judiciário na ordem do dia. 

A adesão principiológica do modelo de transação à veracidade, lealdade, boa-fé, confiança, colaboração e celeridade é um fundamento pragmático que formata um escudo que nos defende contra aqueles para quem princípios são guarda-roupas nos quais cabem todas as fantasias. Princípios são valores factíveis. Indicações de alçada, tal como se lê no projeto, temperadas por um rígido modelo de fundamentação e de publicidade, dissolveriam a maldosa premonição do favoritismo. 

A transação, em princípio, repele qualquer negociação do montante do tributo devido. Bem entendido, a transação poderá dispor somente sobre multas, de mora e de ofício, juros de mora, encargos de sucumbência e demais encargos de natureza pecuniária, bem como valores oferecidos em garantia. 

A transação é um modelo conhecido na Espanha ("reclamaciones economico-administrativas"), na Itália ("accertamento con adesione", que substitui o "concordato tributario") e na Alemanha, onde a "Tatsächliche Verständigung" suscita acordo sobre os fatos. Já nos Estados Unidos há os acordos conclusivos ("close agreements") e as promessas de compromisso ("offerts in compromise"). Como observou José Casalta Nabais, "os países mais progressivos, com o estado de direito estabilizado há centenas ou várias dezenas de anos, solucionam a maior parte dos litígios, incluindo os que surgem no agitado domínio do direito dos impostos, em sede administrativa (lato sensu)". 

O projeto de transação ameaçaria um eventual e imaginário advogado de plantão que poderia ganhar a vida na exploração da miríade de alternativas que a litigância oferece. Reporto-me ao filoxera social, na deliciosa imagem de Monteiro Lobato. O projeto de transação, no entanto, quebra o tédio das discussões analíticas, entoadas por oradores que se disfarçam de lógicos, que esquecem que o direito é menos lógica do que experiência, e que vivem no frustrante debate entre os limites da lei complementar e da lei ordinária. Faz exatamente 20 anos que não passam disso. É hora de mudar. 

O projeto de transação inova, avança, desafia, instiga. É talvez por isso que assusta. E é justamente por isso que revela nossos medos, angústias e fraquezas. E que nos torna tão agressivos em momento que exige esforço único para o fortalecimento das instituições democráticas, centradas no diálogo e na confiança. 

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é procurador da Fazenda Nacional em Brasília e doutor e mestre em direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo 

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