10 de Dezembro de 2008 - 14h:59

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Aquisição de áreas rurais e restrições ao capital estrangeiro

Por: Valor Econômico - Ricardo Cerqueira Leite

Os profissionais que militam no segmento de agronegócios atravessam um momento de expectativas em razão de eventuais restrições a serem impostas ao capital estrangeiro para a aquisição de áreas rurais no Brasil. Tais restrições decorreriam do reexame do Parecer nº 01/97 da Advocacia Geral da União (AGU), que praticamente ratificou o Parecer nº 04/94, que analisou a legalidade das restrições constantes na Lei nº 5.709, de 1971.  

O objetivo, aqui, não é discutir o mérito do mecanismo de restrições ao capital estrangeiro na aquisição de áreas rurais frente à preservação da soberania nacional, mas apenas chamar a atenção a possíveis afrontas ao sistema jurídico brasileiro e a ameaças a princípios e normativos constitucionais. 

Recapitulando a controvérsia, o parágrafo 1º do artigo 1º da Lei nº 5.709 estabelece que "fica sujeito ao regime estabelecido por essa lei a pessoa jurídica da qual participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras, físicas ou jurídicas, que tenham a maioria do seu capital social, ou tenham sede no exterior." Assim, a Lei nº 5.709 privilegiou a origem do capital como critério para definir a nacionalidade da pessoa jurídica, e, com base nesse critério, definiu as restrições indicadas no texto legal mencionado. 

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 171, que posteriormente foi revogado pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995, subdividia a empresa brasileira em empresa brasileira de capital nacional e empresa brasileira de capital estrangeiro. Portanto, de acordo com a Emenda Constitucional nº 6, o critério do domicílio da pessoa jurídica é o que voltou a prevalecer, e não o da nacionalidade do capital. 

Foi esse o entendimento da AGU por meio do Parecer nº 04/94, depois ratificado pelo Parecer nº 01/97. Este último adicionou que possíveis restrições poderiam ser impostas ao capital estrangeiro tão somente por meio de lei. Diz o texto da revisão que, em virtude da desconstitucionalização do conceito de empresa brasileira, seria possível ao legislador infraconstitucional estabelecer novas restrições. Com efeito, o próprio artigo 190 da Constituição Federal, plenamente em vigor, estabelece que "a lei regulará e limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e estabelecerá os casos que dependerão de autorização do Congresso Nacional." 

A questão central que se coloca nesse momento é a seguinte: uma nova revisão do Parecer nº 01/97 poderá ter o efeito de estabelecer restrições ao capital estrangeiro e, assim, ressuscitar as restrições constantes na Lei nº 5.709? Entendemos, definitivamente, que não. 

Parece não haver espaço para dúvidas sobre a revogação dos dispositivos citados da Lei nº 5.709. A Constituição Federal de 1988 deixou claro que o critério para definir a nacionalidade de uma empresa é o seu domicílio, e não a origem do capital. Nessa mesma linha, o Código Civil brasileiro de 2002 estabelece, em seu artigo 1.126, que "é nacional a sociedade organizada de conformidade com a lei brasileira e que tenha no país a sede de sua administração." Portanto, se as restrições da Lei nº 5.709 se dirigem às pessoas estrangeiras, elas não podem ser aplicadas às pessoas nacionais, mesmo às pessoas jurídicas que tenham sido constituídas mediante aporte de capital estrangeiro 

Ainda que se reconheça, face ao disposto no inciso X do artigo 4º da Lei Complementar nº 73, de 1993, o caráter vinculante dessa interpretação aos órgãos e entidades da administração federal, não nos parece que a revisão do Parecer nº 01/97 da AGU possa ser o meio legítimo a estabelecer restrições ao capital estrangeiro. Essa tarefa cabe exclusivamente à lei, vale dizer, é matéria de competência exclusiva do Poder Legislativo. 

Além desse principal argumento acerca dos efeitos de possível revisão do mencionado parecer, é importante frisar que hoje as transações no meio do agronegócio têm natureza societária e implicam venda de participações e controle. Portanto, pode-se concluir, por hipótese, que a revisão do Parecer nº 01/97 da AGU poderia ter o efeito de impedir empresas domiciliadas no Brasil, ou seja, empresas brasileiras constituídas por capital estrangeiro, de adquirir cotas ou ações de outra pessoa jurídica que se dedique à atividade agropastoril. Nessa mesma linha de raciocínio, antes de uma fusão ou incorporação que envolva uma pessoa jurídica formada por capital estrangeiro, seria necessário verificar se dentre os ativos não há área rural, pois possivelmente aquele bem não poderia ser transferido à incorporadora, se constituída por capital estrangeiro. Essas hipóteses nos parecem insustentáveis do ponto de vista jurídico. 

Em conclusão, entendemos que o parágrafo 1º da Lei nº 5.709 foi revogado pelo texto constitucional de 1988, de modo que não é possível considerar as restrições constantes daquele texto legal. Uma eventual revisão do parecer da AGU não poderá ter o efeito jurídico de restringir a aquisição de áreas rurais, pois o texto constitucional cristaliza o princípio da legalidade no artigo 190, especificamente no que tange a restrições à aquisição da propriedade rural, ou seja, somente a lei pode estabelecer tais restrições. Espera-se que, ao avaliar essa questão, o Estado brasileiro, na manifestação dos poderes Executivo e Legislativo, não se distancie do Estado de direito e atue de forma a preservar princípios constitucionais e a evitar que os prejudicados busquem a prestação jurisdicional e, assim, contribuam ainda mais para o agravamento das condições de trabalho do já combalido Poder Judiciário. 


Ricardo Cerqueira Leite é advogado especialista em direito empresarial 

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