07 de Janeiro de 2009 - 12h:20

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O STF e o crime de apropriação indébita de INSS

Por: Valor Econômico - Douglas Fischer

Com a chancela - por ora, espera-se - de parcas decisões jurisprudenciais, alguns nobres advogados que militam na área do direito penal têm propagado a idéia de que o Supremo Tribunal Federal (STF) teria mudado seu entendimento acerca de como se consumaria o delito denominado de apropriação indébita previdenciária, previsto no artigo 168-A, parágrafo 1º, inciso I do Código Penal. A suposta alteração na jurisprudência da corte suprema teria sido promovida durante o julgamento do Inquérito nº 2.537, que, segundo alguns, teria definido que, para que o crime reste consumado, seria necessária a demonstração de que o agente também teria se apropriado dos valores que descontou e não repassou aos cofres públicos. Com todas as vênias, há um manifesto equívoco, pois tais doutrinadores têm-se limitado a ler - e propagar - somente a ementa da decisão do Supremo, auxiliando na difusão de uma nova forma de interpretação jurídica, que denominamos há algum tempo de "hermentismo" - termo inexistente no dicionário, é verdade, mas que para nós significa a "hermenêutica das ementas".  
 
No referido acórdão, efetivamente constou na ementa - por equívoco, certamente - que para se consumar o crime seria necessária a demonstração de que o agente teria se apropriado dos valores que descontou e não repassou aos cofres públicos. Não necessita se apropriar. Nem poderia o Supremo dizer o contrário. O crime se consuma unicamente com a retenção e o não-repasse dos valores no prazo legal aos cofres públicos. Não se exige a chamada apropriação indébita (a inversão da posse), denominada em expressão jurídica clássica como "animus rem sibi habendi". 

No julgamento do Inquérito nº 2.537, para quem tiver o trabalho de ler todo o teor do julgamento, e não apenas a ementa, é fácil verificar que somente o relator foi quem defendeu a - com a devida venia - esdrúxula idéia de que o crime necessitaria, para sua consumação, que o autor do crime também se apropriasse dos valores. Pior que isso foi já se ver alguns julgados aplicando o "precedente". Quer dizer: aplicando a ementa. É assim que se têm formado certos entendimentos jurisprudenciais, o que, para nós, chega a ser surreal e certamente causaria invejas ao maior dos mestres do surrealismo, Salvador Dali. 

Algumas rápidas observações: a primeira é a de que, no julgamento referido, estavam presentes apenas sete dos onze ministros do Supremo. Desses sete presentes, apenas um defendeu tal ponto de vista - o ministro Marco Aurélio, que, aliás, já admitiu publicamente ter uma verdadeira sina de divergir. O ministro certamente incorreu em erro, pensamos nós, porque a corte colegiada, mesmo que pela composição mínima exigida para seu funcionamento, não acolheu a referida tese. 

Em segundo lugar, o eminente procurador-geral da República apresentou embargos de declaração, alertando para omissões e contradições do julgado, mas deu-se verdadeira "penada" nos aclaratórios, sob o pretexto de que estaria pretendendo reanalisar a matéria. Verdadeiro argumento de autoridade e não autoridade do argumento. Para nós, respeitosamente, a penada se deu para que não aparecesse as manifestas omissão e contradição do que efetivamente decidido e o que constou da ementa. 

Se analisado o inteiro teor do aresto, ao menos é assim que lemos, é fácil verificar que o ministro Cezar Peluso foi enfático acerca da total improcedência da tese trazida pelo relator, como, inclusive, há muito vem dizendo, acertadamente, o Supremo. Na seqüência, os debates tomaram outro rumo e o tribunal acabou entendendo que, efetivamente, era caso de arquivamento do inquérito. Mas não pelos fundamentos declinados pelo eminente relator. Isso é muito claro. Ler os argumentos e o que foi decidido é essencial! 

Consoante se vê da norma que interessa ao caso - o artigo 168-A, parágrafo 1º, inciso I do Código Penal -, "nas mesmas penas incorre quem deixar de recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à Previdência Social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público". Já no crime do artigo 168 do Código Penal (o verdadeiro delito de apropriação indébita), é indispensável a apropriação da coisa mediante a inversão da posse, sendo necessária a demonstração - exatamente por isso - do chamado "animus rem sibi habendi". Contudo, no delito de apropriação indébita previdenciária - outro brutal erro do nome do crime - não há exigência, na norma penal, da apropriação. O crime se consuma mediante duas condutas: a primeira comissiva (descontar) e a segunda omissiva (deixar de repassar no prazo legal). Inclusive foi o que constou expressamente de argumento do ministro Cezar Peluso ao rebater, pronta e eficazmente, a pretendida tese desenvolvida no êxodo da discussão pelo ilustre relator, ministro Marco Aurélio: "esse caso de apropriação indébita previdenciária não pode ser equiparado ao dos delitos materiais de débito tributário, porque aqui o núcleo do tipo, sobretudo no caso, que é o artigo 168, alínea 'a', inciso I, se compõe de dois verbos. As ações são duplas: primeiro, descontar; segundo, deixar de recolher." 

Resta bastante claro que não subsiste a argumentação de que o crime em tela exigiria também a demonstração do "animus rem sibi habendi". Esperamos que os magistrados e demais operadores do direito atentem para o que foi efetivamente decidido e não incorram no "hermentismo". Ao menos até agora, o Supremo não mudou absolutamente nada, e nem poderá. Se quiser, compete apenas ao Legislativo fazê-lo. 


Douglas Fischer é procurador regional da República na 4ª região e mestre em instituições do direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul 

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