26 de Maio de 2009 - 11h:55

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Juiz não pode aplicar regras iguais para falência e recuperação

Por: Consultor Jurídico - Damares Medina

O Supremo Tribunal Federal (STF) julgará nos próximos dias a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.934, na qual o Partido Democrático Trabalhista (PDT) contesta a constitucionalidade de alguns dispositivos da Lei 11.101/05, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, em especial os incisos I e II, alínea ‘c’, do artigo 83 e inciso II do artigo 141. Os textos impugnados pelo partido referem-se à limitação dos créditos trabalhistas preferenciais a um teto de 150 salários mínimos e à vedação da sucessão trabalhista no regime falimentar.

O PDT pretende, ainda, que o STF dê interpretação conforme ao parágrafo único do artigo 60 da Lei de Recuperação Judicial, cuja aparente lacuna normativa tem ocasionado a aplicação indiscriminada de dispositivos próprios e exclusivos do regime falimentar ao regime de recuperação judicial, tratando-se de forma igual o que a lei disciplinou de forma distinta. Tal exegese tem ocasionado dois problemas: um de ordem central, consistente no afastamento do instituto da sucessão trabalhista no regime de recuperação judicial; outro de natureza incidental, decorrente do deslocamento da competência da Justiça Especializada do Trabalho para a Justiça Comum, especificamente as varas empresariais, que passariam a julgar as causas relativas à relação de trabalho dos empregados de empresas em recuperação judicial.

Na raiz dessas duas indagações está a aplicação indiscriminada de disposições legais específicas para regimes jurídicos distintos: o da recuperação e o da falência.

A solução da presente controvérsia – que alcança magnitude constitucional na medida em que pode representar, de um giro, a vulneração de direitos e garantias fundamentais de trabalhadores empregados e, de outro, o esvaziamento da competência constitucional da Justiça do Trabalho – passa pelos seguintes questionamentos:

1) O novo marco regulatório falimentar instituído pela Lei 11.101/05 prevê dois regimes distintos: o da recuperação extrajudicial e judicial e o falimentar?

2) No silêncio da norma, dispositivos específicos do regime falimentar podem ser aplicados ao regime de recuperação?

3) Por fim, mas não menos importante, o regime de recuperação previsto na Lei 11.101/05 tem o condão de suprimir a competência constitucional da Justiça Especializada do Trabalho?

Nas linhas seguintes serão alinhavados alguns elementos que para responder às questões ora formuladas, especificamente no que diz respeito à compatibilidade do instituto da sucessão trabalhista com o regime de recuperação judicial, bem como à preservação da competência da Justiça do Trabalho.

O novo marco regulatório falimentar instituído pela Lei 11.101/05 prevê dois regimes distintos: o da recuperação extrajudicial e judicial e o falimentar

A existência de uma legislação falimentar eficiente é fundamental para o ambiente econômico. Um sistema de resolução de insolvências que cria mecanismos ordenados de resolução de conflitos e coordenação de interesses para empresas com problemas financeiros ou até mesmo falidas gera resultados eficientes do ponto de vista econômico. Um marco regulatório falimentar eficiente contribui para a definição do comportamento dos agentes e o funcionamento de toda a economia, na medida em que afeta os resultados esperados em caso de insucesso, sinalizando aos agentes econômicos sobre os possíveis resultados a serem obtidos em suas estratégias de negócios (Lisboa, 2006).

A Lei de Recuperação Judicial veio em boa hora, em sucessão a uma legislação ultrapassada que remontava à década de 40 e transformava em nulas as possibilidades de recuperação de empresas que, em dificuldades financeiras, viam-se forçadas a decretar concordata e falência.

Inspirado na teoria da preservação da empresa, o objetivo central do novo marco regulatório falimentar é estimular a atuação coordenada de devedor e credores, a partir da busca de um equilíbrio que leve em consideração a minimização das perdas individuais e a maximização dos ganhos coletivos. O corolário maior a orientar e equilibrar a referida busca seria a preservação da força produtiva do negócio e na manutenção dos postos de trabalho. A Lei de Recuperação Judicial é sistematizada em oito capítulos a seguir elencados:

I – Disposições preliminares (artigos 1º a 3º)
II – Disposições comuns à Recuperação Judicial e à falência (artigos 5º a 46)
III – Da Recuperação Judicial (artigos 47 a 72)
IV – Da convolação da Recuperação Judicial em Falência (artigos 73 e 74)
V – Da Falência (artigos 75 a 160);
VI – Da Recuperação Extrajudicial (artigos 161 a 167);
VII – Das Disposições Penais (artigos 168 a 188); e
VIII – Disposições finais e transitórias (artigos 189 a 201).

Em uma perspectiva sistemática, a Lei 11.101/05 criou pelo menos dois regimes distintos. O regime da recuperação judicial, menos gravoso, incidente no caso de possibilidades concretas de reversão do quadro de insolvência e de dificuldades empresariais, e o regime falimentar, radicalmente vocacionado à garantia da rápida alienação dos ativos empresariais tangíveis e intangíveis de forma a preservar o seu valor e, no limite, assegurar a máxima satisfação dos direitos dos credores.

No regime de recuperação judicial, como o próprio nome indica, o objetivo central é o soerguimento da empresa, seja por intermédio de uma reestruturação, ou da alienação de unidades produtivas isoladas ou em conjunto.

No regime falimentar o objetivo não é outro senão a celeridade na alienação de todos os ativos empresariais de forma a assegurar a preservação dos seus valores e conseqüente maximização das possibilidades de ressarcimento dos credores.

O referido marco regulatório, quando quis prever disciplina comum para ambos os regimes, o fez de forma expressa, no Capítulo II (Disposições comuns à Recuperação Judicial e à falência, artigos 5º a 46), especialmente talhado para essa finalidade.

No mais, a Lei de Recuperação Judicial trilhou disciplina específica e incomunicável para os regimes de recuperação judicial e de falência, conforme se depreende de seus Capítulos III e V.

O silêncio eloqüente da norma que disciplina o regime de recuperação judicial veda a aplicação de dispositivos específicos do regime falimentar
 
Partindo da premissa de que a Lei ora impugnada tratou em disciplinas distintas os regimes de recuperação judicial e falimentar, há de se perquirir se a suposta lacuna do parágrafo único do artigo 60 justificaria a aplicação subsidiária do inciso II do artigo 141, transcritos no quadro abaixo, com destaques atuais:
 

CAPÍTULO III
DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL
 
CAPÍTULO V
DA FALÊNCIA
Art. 60. Se o plano de recuperação judicial aprovado envolver alienação judicial de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor, o juiz ordenará a sua realização, observado o disposto no art. 142 desta Lei.
Parágrafo único. O objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária, observado o disposto no § 1º do art. 141 desta Lei.[1]
 
Art. 141. Na alienação conjunta ou separada de ativos, inclusive da empresa ou de suas filiais, promovida sob qualquer das modalidades de que trata este artigo: (...)
 
II – o objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária, as derivadas da legislação do trabalho e as decorrentes de acidentes de trabalho.

O cotejo das duas disciplinas conduz-nos a gradação na relativização dos direitos individualmente considerados dos credores em prol da solução de mercado que se pressupõe mais eficiente.

Se, na recuperação judicial, o objeto a ser alienado é liberado das obrigações genéricas do devedor e especificamente daquelas de natureza tributária, na falência, o arrematante vê-se livre, de forma expressa e inconteste, não apenas das obrigações de natureza tributária, mas inclusive daquelas derivadas da legislação do trabalho e de acidentes de trabalho.

Trata-se de hipótese de silêncio eloqüente do legislador que optou por aumentar a relativização dos direitos dos trabalhadores em caso de falência, afastando a figura da sucessão trabalhista, e proteger esses mesmos direitos, em caso de recuperação judicial, afastando tão somente a sucessão no tocante às obrigações tributárias.

A explicitude do inciso II do artigo 141 conjugada com o silêncio do parágrafo único do artigo 60 reforça e atesta a compatibilidade do instituto da sucessão trabalhista com o regime de recuperação judicial.

Amens legislatoris e o histórico da tramitação da Lei 11.101/05 reforçam esse entendimento, na medida em que a Proposta de Emenda nº 12, de autoria do Senador Arthur Virgílio, que previa a alteração do parágrafo único do artigo 60 da norma em comento para estabelecer, de forma expressa, a liberação do ativo alienado dos ônus trabalhistas no regime de recuperação judicial.

Não obstante sua propositura, a Proposta de Emenda 12 foi rejeitada sob o seguinte fundamento:

“A exclusão da sucessão trabalhista na recuperação judicial pode dar margem a fraudes aos direitos dos trabalhadores e comportamentos oportunistas por parte dos empresários. Além disso, é preciso ressaltar que – diferentemente do crédito tributário, protegido, ao menos, pela exigência de certidão negativa ou positiva com efeito de negativa para concessão de recuperação judicial – o crédito trabalhista fica desguarnecido caso a empresa seja vendida e o valor apurado seja dissipado pela administração da empresa em recuperação judicial, já que não há, na recuperação judicial, ao contrário da falência, vinculação ou destinação específica destes valores.” (destaques atuais)[2]

Portanto, não se trata de lacuna normativa a oportunizar supressão por intermédio dos métodos tradicionais de exegese, mas, sim, de silêncio eloqüente da norma que obsta a extensão da disciplina falimentar nos termos da doutrina acerca das lacunas e silêncios normativos (Larenz, 1983) e da jurisprudência dessa Excelsa Suprema Corte:

“Só se aplica a analogia quando, na lei, haja lacuna, e não o que os alemães denominam ‘silêncio eloquente’ (beredtes Schweigen), que é o silêncio que traduz que ahipótese contemplada é a única a que se aplica o preceito legal, não se admitindo, portanto, aí o emprego da analogia.” (RE 130.554, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 28.6.1991)

Em idêntico sentido, o Secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Marcos Lisboa, assevera: “a outra medida de cunho tributário com repercussão direta nas condições de reabilitação da empresa é o fim da sucessão tributária na alienação de ativos de empresas em recuperação judicial. (...) Na falência, alienação de ativos está livre não só da sucessão tributária, mas também da sucessão trabalhista.[3]”. Logo, apenas no regime falimentar resta inibido o instituto da sucessão trabalhista.

Nunca é demais frisar que a relativização de direitos e garantias fundamentais com o afastamento da sucessão trabalhista jamais poderia se dar de forma implícita, mas sim explicitamente, nos moldes do inciso II do artigo 141 da Lei em comento.

Portanto, a partir do que foi até aqui exposto, conclui-se que o instituto da sucessão trabalhista é compatível com o regime de recuperação previsto na Lei 11.101/05.

O regime de recuperação judicial não afasta a competência constitucional da Justiça Especializada do Trabalho.

No que diz respeito à competência para julgar as causas decorrentes das relações de trabalho de empresas em fase de recuperação judicial os conflitos de competência vêm sendo solucionados de maneira contraditória pelos tribunais superiores a atrair a competência dessa Suprema Corte por força da alínea ‘o’ do inciso I do artigo 102 da Constituição Federal.

O Superior Tribunal de Justiça tem estendido o juízo universal da falência à fase de recuperação judicial tratando de maneira idêntica os dois regimes: de recuperação e de falência. O Tribunal Superior do Trabalho, por sua vez, tem reafirmado a competência constitucional da Justiça Especializada do Trabalho para solucionar das lides decorrentes da relação empregatícia havia entre o empregado e a empresa em fase de recuperação judicial. Daí a importância do papel uniformizador a ser exercido pelo Supremo Tribunal Federal nos termos da alínea ‘o’ do artigo 102 da Constituição.

Na prática, as reclamações em trâmite na Justiça Especializada do Trabalho têm sido obstaculizadas por desvios de competência para a Justiça Comum, mais especificamente para as varas empresariais. Essa estratégia processual tem significado, no limite, a vedação de acesso ao Poder Judiciário se considerarmos a situação de miserabilidade à qual muitos desses trabalhadores foram expostos nos processos de recuperação judicial.

Isso porque a Justiça Comum não comunga de muitos dos princípios próprios da Justiça Obreira que tem por objetivo a proteção do trabalhador hipossuficiente na relação de emprego, mediante a facilitação de seu acesso ao Poder Judiciário. Ademais, despesas extraordinárias com o deslocamento de competências para foros nos quais o empregado não reside têm frequentemente inviabilizado as lides. Sem falar no elemento procrastinador da solução da controvérsia judicial inerente a todo conflito de competência.

Acrescente-se à tese a literalidade do parágrafo 2º do artigo 6º da Lei ora vergastada que apenas suspende a execução das sentenças trabalhistas durante 180 dias:

“Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário. (...)

§ 4º Na recuperação judicial, a suspensão de que trata o caput deste artigo em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação, restabelecendo-se, após o decurso do prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente de pronunciamento judicial.” (destaques atuais)

O mecanismo conhecido como stay period consagrado na literatura e na experiência internacional, que impede os credores de exercerem o seu direito de retirada de bens dados em garantias ou de solicitarem a falência da empresa, preservando-a de comportamentos oportunistas que possam surgir nesse momento de fragilidade.

Embora essa suspensão temporária seja importante para garantir à empresa um fôlego adicional na negociação de seu plano de recuperação, ela não pode se arrastar por um tempo indefinido, pois quanto maior o horizonte temporal da suspensão, maior o incentivo perverso de comportamentos oportunistas e o estímulo ao uso desse procedimento como forma de postergar a execução de dívidas (Lisboa, 2006).

Ora, se a jurisprudência do STF consolidou-se no sentido de reconhecer o juízo universal falimentar, tal entendimento jamais se estendeu à fase de concordata. Mutatis mutandis, não há de se admitir que durante a recuperação judicial bem sucedida, que tem como escopo fundamental o soerguimento do empreendimento, seja sustada a competência da Justiça do Trabalho e vulnerado o direito dos trabalhadores ao foro especial!

Conclusões

Em face do que foi até aqui exposto, pode-se concluir que:

1. O novo marco regulatório falimentar instituído pela Lei 11.101/05 prevê dois regimes distintos: o da recuperação extrajudicial e judicial e o falimentar.

2. O silêncio eloqüente da norma que disciplina o regime de recuperação judicial obsta a aplicação de dispositivos específicos do regime falimentar.

3. O instituto da sucessão trabalhista é perfeitamente compatível com o regime de recuperação judicial.

4. Por fim, mas não menos importante, o regime de recuperação previsto na Lei 11.101/05 não tem o condão de suprimir a competência constitucional da Justiça Especializada do Trabalho para o julgamento das causas decorrentes da relação de trabalho entre empregados e empresas em regime de recuperação judicial.


Damares Medina é advogada e mestre em Direito Constitucional.
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