08 de Março de 2007 - 14h:28

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A súmula vinculante e o mito da panacéia geral

Por: Pedro Estevam Serrano - Última Instância

Não é o direito de recurso que traz morosidade ao Judiciário, mas sim a burocracia forense. Para comprovar essa afirmação, basta checar quanto tempo qualquer processo judicial demora em cartório, no distribuidor, no protocolo ou na imprensa para publicação.

A Justiça brasileira é reconhecidamente lenta —e qualquer decisão demorada é injusta por natureza—, mas tal lentidão não pode e nem deve ser atribuída ao nosso sistema recursal, como invariavelmente acontece quanto o assunto é a súmula vinculante.

Como conceito, a súmula vinculante tem mais sentido em sistemas jurídicos em que a normatividade é dada por princípios amplamente denotativos e demasiadamente vagos ou por costumes.

Nesses casos, compete ao Judiciário traduzir esses princípios extremamente abrangentes, desempenhando muito mais um papel regulador da vida social, do que o de mero aplicador de normas. Esse não é o caso do Brasil. Nossa tradição germano-românico se apóia em relações jurídicas reguladas pela lei, e não por costumes, normas muito genéricas ou mesmo decisões judiciais.

Portanto, é da natureza do nosso Estado republicano a diversidade de decisões judiciais, que decorre, particularmente, da plurissignificação natural da maioria das normas jurídicas, já apontada por Kelsen.

Mas o maior problema do sistema jurídico brasileiro hoje é, muito provavelmente, a demora nas decisões, e não sua diversidade. Precisamos, portanto, garantir celeridade ao processo, mas não podemos querer alcançar esse objetivo pelo uso de mecanismos imperiais, autoritários e anti-republicanos. Nós temos que superar essa demora nas decisões judiciais mantendo os valores da República e Democracia no exercício da jurisdição. Esse é o desafio.

Estabelecer a competência de criação de súmula vinculante para o Supremo Tribunal Federal é estabelecer um império dessa corte dentro do Poder Judiciário brasileiro e sobre toda a magistratura. Isso é um equívoco.

É fundamental que o sistema Judiciário preserve a independência do Juízo de primeiro grau ao decidir, porque é ele quem está mais próximo da comunidade. Afinal, o juiz de primeiro grau não perde em importância para um ministro do Supremo, eles apenas têm funções diferentes: ao ministro do Supremo cabe cuidar da aplicação da Constituição Federal, ao juiz de primeiro grau compete o exercício da jurisdição junto à comunidade.

A adoção da súmula vinculante em nada contribui para erradicar a principal causa do problema: a existência de uma máquina administrativa Judiciária mal gerenciada e que atrasa o processo, o que não guarda relação com o exercício do direito de defesa ou do direito de recurso dos cidadãos.

O cotidiano da vida forense nos indica que o mecanismo eficiente para encurtar o tempo das decisões judiciais é basicamente a supressão da demora burocrática. Qualquer processo judicial —é sabido por todos— demora muito mais para levar um “carimbo” de cartório e para ser distribuído, do que no correr de qualquer prazo de recurso. O que alonga os nossos processos é a excessiva burocracia e seu mau gerenciamento administrativo.

Portanto, antes de se restringir direitos do cidadão, concentrando o poder de decisão num único órgão jurisdicional, numa instância única, como é o caso do STF, é preciso eliminar essa burocracia.

O mecanismo da súmula vinculante, instituído por emenda constitucional e já regulamentado, implica restrição ao direito de defesa e ao direito de recurso dos jurisdicionados. Não combate, portanto, a real causa do problema. Com a adoção da súmula vinculante, restringe-se o direito do sujeito de ir à justiça e ter o seu caso, a sua situação individual, especificamente apreciada, ou seja, de obter um juízo individual.

Além disso, ela acaba por subtrair o direito fundamental que a Constituição atribui ao cidadão, quando este for afetado individualmente por algum ato estatal, de movimentar a jurisdição. Afinal, julgar um caso análogo não é julgar aquele caso especificamente apresentado.

A restrição advinda da adoção da súmula vinculante é, portanto, uma restrição indevida à cidadania. É um modo imperial e não republicano de funcionamento do Poder Judiciário que não vai resolver o problema da demora judicial. Utiliza-se do argumento da celeridade para, em verdade, buscar oferecer sustentação a atos governamentais de validade duvidosa através de decisões centralizadas em Brasília, logo, distantes da comunidade.

É preciso dotar o Judiciário de aparelhamento adequado e pessoal capacitado e treinado para poder agilizar a procedimentalização dos processos. Essa iniciativa passa pelo investimento em tecnologia e na modernização dos métodos de gerenciamento dos procedimentos. O Judiciário é mal estruturado e burocratizado. Precisa se modernizar e se tornar um poder mais republicano: mais próximo do público, mais transparente.

Nesse processo, agilidade e transparência são complementares. Dessa forma, conseguiremos um judiciário mais célere de uma forma muito mais eficaz e republicana, sem lançar mão de métodos autoritários e imperiais, sem restringir o direito de defesa e o direito a recursos, e sem apelar para a súmula vinculante.

Precisamos escapar do velho e recorrente vício da cultura nacional de ficar arrumando soluções mágicas para problemas estruturais. Em vez de buscarmos soluções eficientes de pequeno vulto, de trabalho e de empenho, preferimos as soluções mágicas, que atraiam os holofotes da mídia, que transformem todos os problemas nacionais num verdadeiro espetáculo de circo. Verdadeira panacéia dos problemas judiciais.

Esse é o pano de fundo da adoção da súmula vinculante pelo ordenamento jurídico brasileiro, apresentada para a sociedade como sendo o mecanismo capaz de resolver o problema da lentidão da Justiça. Mas todos os que convivem com o Judiciário em seu dia-a-dia sabem que as causas do problema estão longe de serem solucionadas dessa maneira.

Investimento em tecnologia, aquisição de equipamentos, qualificação de pessoal e adoção de métodos modernos de gerenciamento, associados a mecanismos que garantam maior transparência e controle da população e dos órgãos de correição do trabalho desenvolvido pelo Poder Judiciário, podem não ser as vedetes da mídia neste exato momento, mas, com certeza, são o caminho mais seguro para se encontrar uma solução para o grave problema da morosidade que emperra a Justiça neste país.

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