07 de Dezembro de 2009 - 12h:26

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Nova Lei Concorrencial e suas emendas

Por: Gabriel Nogueira Dias

No imaginário cristão e literário é famoso o episódio envolvendo Pedro que, durante sua fuga da perseguição aos cristãos em Roma, reencontra Jesus pelo caminho e lhe pergunta: Quo vadis, Domine? (Para onde segues, Senhor?). Ao receber como resposta: Venio Romam iterum crucifigi (sigo a Roma para novamente me deixar ser crucificado), o apóstolo cai em si e corajosamente dá meia volta para, aceitando seu destino, ser preso e crucificado pelos romanos, sem, porém, nunca abrir mão de sua fé.
Lenda ou verdade, o Projeto de Nova Lei Concorrencial, que une iniciativa da Câmara (PL nº 3.937, de 2004) e do Executivo (PL nº 5.877, de 2005) e ora se encontra no Senado (PL nº 06, de 2009), parece viver semelhante momento existencial. A despeito de ser considerado uma boa iniciativa, ao chegar em início de 2009 ao Senado e receber uma saraivada de críticas ao texto, ele parecia ter perdido um pouco do ímpeto para cumprir sua missão de aperfeiçoar a defesa da concorrência no país, tocada atualmente pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Secretaria de Direito Econômico (SDE) e Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae). Corria o risco de restar na prateleira e ser atropelado por um 2010 agitado eleitoralmente, o que pode parar o Legislativo.
Revitalizado, porém, pelo apoio pessoal do presidente Lula e da base governista, que "sponte propria" precipitou discussões acerca de falhas no texto, o projeto tomou fôlego e se mostrou pronto para cumprir destino traçado no próprio PAC (2007), onde figurava com destaque.
Com efeito, após conseguir ser aprovado em três comissões do Senado Federal (Ciência e Tecnologia, Infraestrutura e, Assuntos Econômicos) nas últimas oito semanas, restando também prestes a ser aprovado nas Comissões de Defesa do Consumidor e Constituição e Justiça, as cerca de 30 emendas que turbinaram a Nova Lei Concorrencial merecem cuidadosa atenção. Resumidamente, elas tocam em quatro pontos-chave.
Em primeiro lugar, as emendas visam calibrar melhor poderes e funções do superintendente-geral e do Tribunal Administrativo. Como se sabe, no projeto, o Cade se torna tribunal e a SDE uma superintendência, com poderes tanto para abrir e fechar investigações (e.g. cartel) quanto para decidir sobre ato de concentração (e.g. fusões) que seguiria ao crivo do novo Cade, se impugnada. A decisão dos casos seria mais rápida, mas a concentração de poder é clara. Um grupo de emendas propõe maior equilíbrio ao sistema e: a) o tribunal poderá avocar qualquer investigação decidida pelo superintendente: menos poder e maior possibilidade de controle; b) inspeções em empresas sem ordem judicial estão proibidas: investigar sim, mas dentro da lei; c) procurador-geral, economista-chefe e conselheiro do tribunal (se vacante), não poderão ser nomeados diretamente pelo tribunal e superintendência. Eles devem indicados pelo governo e aprovados no Senado: controle externo é sempre bom.
Em segundo lugar, atiçando atualíssima polêmica, houve um claro posicionamento das comissões no sentido de que a aplicação da lei concorrencial é subsidiária à legislação das agências reguladoras. Em tempos de disputa Cade/Banco Central e da alentada discussão sobre a eficiência das agências, o tema requer mais debate, pois é preciso avançar sobre a relação entre regulação e concorrência, que, por certo, não são esferas excludentes. Aqui, note-se também que as emendas propostas esvaziam e tornam quase protocolar a figura da Seae/MF, que fica impedida de opinar em consultas públicas sobre propostas feitas pelas agências reguladoras.
Em terceiro lugar, as comissões do Senado se mostraram sensíveis à necessidade de dotar os órgãos concorrenciais de instrumentos para decidir com eficácia. Nesse sentido, aprovou-se emenda que, de um lado, abre ao investigado a possibilidade de propor, não só por uma única vez como previa originalmente o projeto, compromisso para negociar com a administração obrigações em troca do fim das investigações; de outro lado, o artigo que trata da leniência foi emendado para enfatizar a proibição de denúncia criminal contra o leniente. São avanços importantes, mas tímidos e não se pode perder a oportunidade de aperfeiçoar na lei institutos que, em teoria e na prática, proporcionam a todos os envolvidos caminhos para uma defesa da concorrência mais eficaz e segura. Neste particular, não se deve prescindir da experiência do Ministério Público, cuja atuação na seara concorrencial foi, aliás, enfatizada nas novas emendas.
Por fim, até o momento, o Senado caminha no sentido de aprovar emendas que com critérios de faturamento ainda mais conservadores à apresentação de fusões ao novo Cade. No caso da fusão entre empresas A e B, por exemplo, os parâmetros mínimos de faturamento não seriam mais de R$ 400 milhões (empresa A) e R$ 30 milhões (empresa B), mas de R$ 150 milhões (empresa A) e R$ 30 milhões (empresa B). A mudança recepciona pleito por maior controle das operações, mas esquece que: a) segundo dados históricos do Cade e das autoridades concorrenciais mundiais, cerca de 90% das fusões analisadas são simples e não mereceriam maior atenção; e b) com a nova lei, adotar-se-á, como se sabe, sistema de análise prévia, ou seja, o negócio não segue em frente antes de aprovado. Se já há, porém, incerteza sobre a capacidade do Estado de munir o novo Cade, de imediato, com técnicos para examinar com rapidez o atual número de fusões, imagine se elas aumentarem. Uma enxurrada de notificações pode tapar a visão sobre o essencial.
Como se vê, os temas à baila têm uma importância do tamanho do projeto. É preciso continuar este aperfeiçoamento cuidadosamente, mas uma coisa é certa: o projeto ganhou rumo e não abandonará sua profissão de fé, pela concorrência.
Gabriel Nogueira Dias é mestre e doutor pela Universidade de Bonn - Alemanha, sócio do escritório Magalhães, Nery e Dias - Advocacia
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