27 de Maio de 2010 - 16h:39

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Quem paga (mais) a conta do governo?

Por: JOSÉ ROBERTO AFONSO - O Estado de S.Paulo

Um dos enganos mais comuns na área fiscal é achar que não pagam impostos aqueles que não são descontados do Imposto de Renda no contracheque ou que não recolhem IPVA por não terem carro, muito menos IPTU por não serem donos de imóvel. Diferentemente do resto do mundo, o Brasil usa e abusa de cobrar tributos embutidos nos preços dos bens, sem divulgar quanto pesam e ainda aplicados de forma cumulativa (um tributo incide sobre si próprio e sobre outros). Ao tributarmos mal e muito o consumo, como este absorve a maior parte da renda das famílias de menor renda, estas pagam proporcionalmente mais impostos que as mais abastadas. É um erro crer que quem ganha bolsa do governo não paga imposto: proporcionalmente pode estar pagando até mais do que um ricaço. Obviamente não é razão para lhe retirar o benefício, mas uma política pública social efetiva também precisa atentar para repensar a tributação, que, num traço peculiar brasileiro, é um forte determinante da nossa desigualdade.

Carecemos de estudos bem detalhados sobre quanto cada família paga de impostos e quanto recebe em benefícios e serviços públicos. Há boa literatura internacional, até vizinhos andinos já fizeram tal pesquisa, mas no Brasil dá para contar nos dedos as pesquisas sobre o tema, diante de sérias limitações estatísticas e sem maiores debates, nem mesmo na academia. Ilustra o fato que por muito tempo só se conhecia a pesquisa de Ibrahim Eris, de 1975: nos extremos, os impostos absorviam 36% da renda de quem ganhava até um salário mínimo contra 14% dos de renda superior a 100 salários. Uma pesquisa da Fipe, coordenada por Maria Helena Zockun, calculou para 2004 que a carga chegou a 48,8% da renda para famílias que recebiam até dois salários contra 26,3% das que ganhavam mais de 30 salários. Resultados semelhantes foram divulgados pelo Ipea, que, atualizados para 2008, apontaram um aumento da incidência sobre os mais pobres para 53,9% da renda contra 29% dos mais ricos.

Pior do que as famílias mais pobres suportarem uma carga tributária 86% superior à das mais ricas é descobrir que tal regressividade avançou nos últimos anos, justamente ao contrário do discurso governamental de que as desonerações teriam sido feitas em favor dos mais pobres. O mesmo pode se depreender da evolução da Receita Federal administrada (exclusive a previdenciária) por atividade: entre 2002 e 2009, o total coletado cresceu 29,2% em termos reais, mas foi maior a variação em ramos que produzem bens essenciais para consumo dos mais pobres, como a indústria de alimentos (85%), de vestuário e calçados (51%), telecomunicações sem fio (79%), energia elétrica (64%), concessionárias de água (212%) e coleta de esgoto (443%). Cresceram abaixo da média, dentre outros, a fabricação de automóveis (37%) e, sobretudo, de petróleo (4%) - todos sabem que carro próprio e seu combustível pesam mais no orçamento dos mais ricos. Outra curiosidade é um aumento acima da média da arrecadação proveniente da fabricação de equipamentos e máquinas (49%) e da indústria da construção (164%), mais uma vez na contramão do discurso do alívio tributário dos investimentos.

Se todos já sabem que a carga tributária aumentou muito nos últimos anos, poucos atentam que tal incremento foi maior para os mais pobres do que para os mais ricos, de modo que aumentou ainda mais a distância entre eles. A complexidade da cobrança e a falta de transparência também são fatores-chave para manter a desigualdade social (não prejudicam só empresas brasileiras, que suportam a maior carga indireta de obrigações no mundo). Mais do que a quantidade, a qualidade da tributação é o maior desafio para uma reforma. É preciso mudar a forma como os tributos são cobrados e por isso a proposta do Senado federal faz uma opção radical pela simplificação. Para começar, os compradores devem ser informados do imposto que pagam numa compra (ainda que por estimativa) e deve ser adotado um só cadastro nacional (de indivíduos e empresas), além de integrar as fiscalizações de todos os governos (por exemplo, seria possível saber no ato que um comprador de uma Ferrari declarou para o Leão uma renda mensal de R$ 1 mil; nem a CPMF seria tão ágil). Já a reforma constitucional precisaria se ocupar da fusão de impostos para que cada base fique sujeita a uma só cobrança. Fica fácil saber o que se paga bem como fiscalizar o que se exige. É um sonho? Não, é uma necessidade real para quem, de fato, se preocupa com as injustiças sociais e que não deveria se conformar com um sistema tributário que funciona exatamente como o idealizado por Robin Hood, mas às avessas.

ECONOMISTA, É MESTRE PELA UFRJ E DOUTORANDO DA UNICAMP

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