17 de Outubro de 2007 - 14h:07

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Informatização revoluciona Judiciário, e também a sociedade

Como até ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) admitem, “Justiça que tarda, falha”. E, no caso do Brasil, esse é, sem dúvida, um dos maiores problemas enfrentados pelos operadores do direito. A morosidade prejudica e irrita advogados, promotores e juízes. Mas ninguém é mais afetado do que a população, que vê suas demandas se arrastando pelos tribunais por infindáveis anos.

Esse quadro cinzento pode ser finalmente revertido com o auxílio da tecnologia. Fóruns digitais, que dispensam o uso de papel, aceleram a tramitação dos julgados de maneira inimaginável. Um processo, que leva de um a dois anos em um tribunal tradicional, pode ser resolvido até em três meses em um fórum digital. E com apenas 25% dos funcionários.

Além de beneficiar o cidadão que pede auxílio à Justiça, a tecnologia também promete revolucionar, para melhor, a vida dos magistrados. Quando o juiz Paulo Eduardo de Almeida Sorci chega ao trabalho, não encontra filas, tumulto ou barulho. Ele ouve pássaros, dá bom dia aos colegas e segue direto ao segundo andar do prédio, onde sua mesa está instalada.

Sem poeira ou papelada, senta-se e dá início ao trabalho que faz há 12 anos, só que de uma maneira radicalmente diferente do que fazia antes, e de como ainda atua grande parte dos colegas de profissão. Sorci trabalha no primeiro fórum digital de São Paulo.

O fórum em questão é uma novidade. Inaugurado há quase quatro meses na zona oeste da capital paulista, o Foro Regional da Nossa Senhora do Ó é o primeiro totalmente informatizado do país. Possui três varas cíveis e uma de família e sucessões no bairro da Freguesia do Ó. E nenhum processo em papel.

Nele, o dia de trabalho começa sem trabalho aparente. Isso porque, conta o juiz Paulo Eduardo Sorci, não existem pilhas de papelada processual. “É assim até eu abrir a tela do computador. Está tudo lá. Acabo de resolver um processo, outro pula na tela, esperando atenção.”

Na Freguesia, já são 5.000 feitos em andamento. Quase metade da demanda do Fórum da Lapa, um dos mais congestionados da capital, já foi para lá, onde um quarto dos funcionários de um fórum tradicional resolve o problema. Normalmente, a média de duração de um processo em primeira instância vai de um a dois anos. No fórum digital, o mesmo processo é solucionado até em três meses.

O juiz Antônio Silveira Neto, presidente de informática da AMB (Associação dos magistrados Brasileiros), viveu rotina semelhante em Campina Grande, na Paraíba, como titular do 2º Juizado Especial Cível da comarca, também informatizado. Um exemplo de que a digitalização, além de reduzir gastos, acelera a tramitação. “Em média, há um ganho de 70% do tempo em cada processo, o tempo da burocracia, gasto em cartórios, que é economizado em favor da sociedade”, afirma.

Após seis meses de funcionamento, a juíza Sulamita Bezerra Pacheco de Carvalho também faz um balanço positivo do que tem sido o Juizado Especial Cível Virtual de Natal (RN), instalado no dia 31 de março deste ano. O juizado, também o primeiro totalmente virtual, acelera o trâmite em até 80%.

À moda antiga?
No sistema tradicional, o processo demora até dez dias apenas para se tornar processo. É preciso dar entrada com uma petição em papel, que recebe uma etiqueta. Em seguida, a distribuição é feita eletronicamente ao juiz, mas o encaminhamento à vara precisa ser realizado por um funcionário.

Chegando lá, a petição é carimbada com confirmação de recebimento. Coloca-se capa, todas as folhas são furadas. Às vezes, são três ou quatro volumes, cada um com 100 folhas. Colocam-se grampos e todas as páginas são numeradas. Só então o processo passa a existir formalmente. E o juiz ainda nem sabe do que se trata.

No processo eletrônico, o advogado encaminha a petição do escritório ou de casa, pela internet. A maioria dos tribunais já disponibiliza sistemas de petição virtual, inclusive os superiores e o Supremo. Distribuída instantaneamente, a petição recebe capa eletrônica, já tem numeração e vai com vista para o juiz. Até aí, nenhum servidor precisou trabalhar. Se ela chega ao fórum em papel, é digitalizada com scanner.

No novo paradigma, a importância do juiz é cada dia maior. Os processos chegam diretamente em pastas virtuais. O programa organiza a pauta, divide em mandados, arquivamentos, pendências e outros tópicos. Além disso, conta com um banco de dados e de sentenças, para facilitar ainda mais o trabalho.

“Agora, o juiz é o gargalo do processo, que antes ficava no cartório”, revela Paulo Sorci. O magistrado trabalha com metas infinitas, porque a demanda chega diretamente a ele, no computador. “É radicalmente diferente, mas é para melhor, mais proveitoso.”

Em sua sala, persistem apenas alguns papéis da 10ª Câmara Criminal do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), na Barra Funda, que ele auxilia. “Eu não tenho mais aquele folhear constante nos processos. Vejo tudo na tela do computador. Não tem os ácaros, o pó.”

Antônio Silveira concorda com a rotina mais tranqüila, com relação à salubridade. E os dois juízes fazem questão de lembrar: o trabalho não diminuiu. “Pelo contrário, são mais processos para o juiz julgar, porque eles não ficam mais embargados nos cartórios.”

Avanços
A virtualização da justiça brasileira é uma iniciativa avançada se comparada a outros países e foi possível graças à Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. O programa utilizado na maior parte dos Estados, hoje, chama-se Projudi e foi desenvolvido pelo CNJ (Conselho nacional de Justiça) com base na experiência de algumas cidades. Um exemplo é o Juizado de Campina Grande.

O Projudi começou a ser instalado no começo do ano e já permite a tramitação eletrônica de mais de 9.000 processos em 15 tribunais. Trata-se de um programa baseado em software livre (sem direitos autorais), que permite o acesso e o peticionamento de qualquer lugar do mundo, via web. Roraima, um dos pioneiros, diminuiu as fases do processo de 40 para 3 dias.

O CNJ estima que, somente em 2007, terão sido investidos R$ 42 milhões na compra de equipamentos para instalar o sistema. Desde o ano passado, a soma é de R$ 69 mi. Nesta segunda-feira (15/10), teve início a distribuição de 3.000 computadores e 2.646 digitalizadores (scanners) para 282 juizados especiais estaduais. A intenção é acabar com o papel no Judiciário dentro de cinco anos.

Em seguida, o intuito é virtualizar os juizados no interior dos Estados. “Será um salto de qualidade inédito da Justiça estadual, que ficará interligada ao sistema virtual padronizado do CNJ”, sustenta o corregedor nacional de justiça, ministro Cesar Asfor Rocha, que preside a Comissão de Informatização, Modernização e Projetos Especiais do CNJ.

A economia, além de financeira —cada processo custa em média R$ 20 apenas com insumos— é ambiental. Por ano, são gastas 46 mil toneladas de papel em processos no país. Para isso, é preciso cortar cerca de 690 mil árvores, o que implica no desmatamento de uma área aproximada de 400 hectares. Além disso, o consumo de água para fabricar o papel é de cerca de 1,5 milhão de metros cúbicos.

Com a medida, faltaram apenas Pernambuco e Acre para completar a virtualização dos JECs (Juizados Especiais Cíveis) em todas as capitais (Recife e Rio Branco não manifestaram interesse em receber os equipamentos). Já São Paulo e Rio não integram a lista porque desenvolvem projetos de implantação próprios.

“O sistema [Projudi] apresenta bom desempenho, com fácil utilização, menus intuitivos e boa organização de telas. A maioria dos usuários, servidores e advogados, elogia a dinâmica”, diz a juíza Sulamita, de Natal. “A virtualização do Judiciário é um caminho sem volta”, complementa o diretor de projetos e modernização do CNJ, Pedro Vieira.

Em setembro, povoados como Tabatinga, a cerca de 1.600 quilômetros de Manaus, também ganharam o Projudi. Seus 48 mil habitantes, isolados pelo Rio Solimões, já podem acessar processos. A maioria por tráfico de drogas, já que a região faz fronteira com a Colômbia. Antes, os papéis tinham de ser levados de avião ou barco. “Agora nos igualamos aos grandes centros urbanos”, comemorou o diretor do fórum local, juiz Celso Antunes da Silva Filho.

Primeiros passos
O sistema não é 100% pronto, diz o juiz Paulo Sorci. Ele revela que teve dificuldades iniciais com o sistema, mas nada que o fizesse economizar elogios hoje. Após anos trabalhando em execução criminal, na Barra Funda, onde já encontrou até barata em arquivo, o magistrado festeja a novidade. “Hoje, resolvo 40 processos por dia. Conseguiria talvez a metade sem o computador. Tudo é com um clique.”

Conforme a Corregedoria Geral de Justiça do TJ-SP, existem em andamento 180.357 processos nas 31 Varas Criminais no Fórum Criminal da Barra Funda. Cerca de 3.000 funcionários e 96 juízes trabalham no local para dar conta da demanda —1.800 feitos por juiz. Tudo em papel, já que o fórum não é digitalizado.

A rapidez do novo sistema é logo demonstrada em uma audiência realizada durante a permanência da reportagem de Última instância no fórum da Freguesia. Um casal teve a separação consensual concluída em pouco mais de dez minutos. E o arquivamento, sem a necessidade de intervenção do cartório, é feito em segundos. Cada um sai com seu comprovante da dissolução, assinado digitalmente.

Para lidar com a nova ferramenta, o juiz passa por um treinamento de informática e algumas horas de erros e acertos em frente ao computador. “Eu tinha apenas noções básicas de operação de programas computacionais”, diz Sorci. “Agora, estou dominando a máquina.”

As dificuldades, no entanto, ainda persistem quando se trata de procedimentos físicos, como mandados e alvarás, que ainda têm de ser materializados para gerar efeito perante terceiros —cartórios, bancos, entre outros.

A assinatura digital, que veio para agilizar e reduzir o trabalho braçal dos juízes, também enfrenta dificuldades. Os primeiros mandados de averbação da Freguesia recebidos pelos cartórios foram ignorados. “Eles devolviam dizendo que não havia assinatura física do juiz e certidão de autenticidade. Até a Caixa Econômica Federal já chegou a devolver alvarás por falta de assinatura. É uma coisa antiga”, completa Sorci.

Focos de relutância
“Toda mudança implica em alguma resistência, é natural, é do ser humano”, considera Walter Nunes da Silva Junior, presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil). “Mas é um caminho sem volta. Não é o futuro só do Judiciário, mas o de qualquer ramo.”

Nunes fala sobre reclamações provindas de alguns juízes que se recusam a trabalhar com o novo sistema. Ainda mais quando se fala em Diário Oficial eletrônico, dificuldade de visualização e acesso a informações. “Eu gostava da folha grande, mas é uma coisa que vamos ter que nos acostumar. Daqui a alguns anos, talvez todo mundo tenha que se acostumar a ler o jornal pela tela do computador”, prevê o juiz do fórum da Freguesia.

Os mesmos problemas fazem parte do processo eletrônico, como a vista cansada, ocasionada pelas seguidas horas de exposição à tela do computador. “Todo juiz usa computador, mas agora ele chega para substituir outros aspectos do trabalho, e não mais apenas a máquina de escrever. Por conseqüência, o magistrado passa mais tempo nele”, avalia o presidente da Ajufe.

O juiz Antônio Silveira Neto pondera que a maior parte dos que resistem são juízes da esfera criminal, âmbito que exige maior quantidade de procedimentos presenciais, e dos não familiarizados com a tecnologia. “De um modo geral, na área cível, a aceitação é imediata”, afirma.

O que falta ser feito
Uma das soluções apontadas para resolver o problema do hábito seria tornar o sistema mais amigável, aspecto estudado atualmente pelo CNJ. “É claro que é preferível ler um livro em papel, pela comodidade. Por isso, o processo tem que ter uma interface limpa, fácil, para tornar a coisa mais prazerosa”, argumenta o presidente da Ajufe. “Enquanto não houver uma padronização total, não vamos ter toda a efetividade da lei da virtualização.”

Por outro lado, ainda resta fazer a digitalização de todos os processos antigos e das instâncias de segundo grau dos Estados. Um trabalho incalculável, visto que os processos antigos têm inúmeros papéis. Muitos deles, inúteis. “Como vai ser decidido o que vai ser digitalizado?”, questiona Nunes.

O fim derradeiro da morosidade, entretanto, depende ainda de fatores estruturais, cuja mudança está sujeita à vontade dos demais poderes, Legislativo e Executivo. “Esse pacote de mudanças faz parte do sonho de muitos juízes. A estrutura processual tem que ser alterada, com menos recursos, mais efetividade e menos graus de jurisdição”, defende Sorci.

“E, em segundo lugar, a mentalidade dos atores do processo”, completa Silveira. “O mau funcionamento dos serviços públicos, o aproveitamento da indústria de recursos, a litigância. Tudo isso repercute na Justiça.”

Apesar disso, a maior mudança já ocorrida em toda a história da Justiça é um caminho sem retorno, impulsionado pelo esforço conjunto de todo o Judiciário e por uma tecnologia de ponta. “A digitalização é a reforma mais importante do Poder Judiciário brasileiro. É radical, mas esse é o futuro”, conclui Walter Nunes.
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